Há uma semana, um repórter ligou-me solicitando uma entrevista para que eu falasse sobre a nova lei federal que concede o direito aos brasileiros de se submeterem a uma modalidade de tratamento do câncer em 60 dias decorridos após o diagnóstico da doença.
De acordo com estimativas do Instituto Nacional do Câncer, órgão gestor da doença no Ministério da Saúde, em 2012 mais de 520 mil novos casos acometerão nossos compatriotas. Enquanto isso a Organização Mundial de Saúde revela um dado mais assustador.
Enquanto na Europa e nos EUA a taxa bruta de incidência da doença está ao redor de 80 novos casos para cada 100 mil habitantes, na América do Sul é de apenas 42 para cada 100 mil.
Outro dado é que no Reino Unido, onde existe o melhor serviço de saúde pública do planeta, saudado nos jogos olímpicos de Londres com orgulho, 95% dos pacientes diagnosticados com a doença recebem tratamento no máximo em 30 dias após.
A baixa incidência sul-americana não se deve à resistência dos povos da região à doença, nem a excelentes programas de prevenção ou a hábitos saudáveis. Deve-se à vergonhosa subnotificação. Ou em português claro, muitos são acometidos pela doença, morrem sem que se tenha nem a chance de serem diagnosticados, muito menos tratados. Ainda morre-se de tuberculose, hanseníase, dengue e latrocínio em todo território nacional.
Ainda rouba-se merenda escolar. Se eu for enumerar os crimes bárbaros cometidos no país em pleno século 21 que são proibidos na constituição federal e que a sociedade nem mais percebe ou nem mais se lembra que são delitos, porque já se incorporaram ao senso comum como “normais”, eu utilizaria todo o site para descrevê-los.
Em 2001, publiquei um relatório sobre a incidência do câncer em Mato Grosso no período de 1993 a 2000, em base de levantamento de laudos de biópsias efectuadas em todos os laboratórios de anatomia patológica, na época existentes.
O meu amigo Marcelo Pires participou desse estudo, fomos orientados por Cor Jesus da UFMT, e concluímos que os dados do Ministério da Saúde apresentava uma defasagem de mais de 30%, porque trabalha com estimativa coletada em apenas alguns centros de tratamento de câncer no país.
Este é um pequeno exemplo do que encontramos de equívoco na política pública na abordagem da doença neste país. Claro que governos precisam dar respostas à população, mesmo que fantasiosas e sem aplicação prática.
De tempos em tempos, surgem novas leis para que fiquemos com a impressão de algo está sendo feito. Mas, como iremos planejar algo de que não temos dados concretos, como vamos tratar uma doença que nem é diagnosticada?
Há alguns meses, foi alardeado um bombástico plano de aquisição de 80 novos equipamentos de radioterapia para serem distribuídos pelo país. Políticos e instituições se inscreveram para se tornarem elegíveis a tal benefício.
Mais um truque do governo. No projeto inseriram uma exigência de que a empresa estrangeira que ganhasse a concorrência, de fornecimento dos aparelhos, deve ter a obrigação de construir uma fábrica de radioterapia em território nacional, utilizando tecnologia e mão de obra brasileiras.
Surtaram! O pior: não há projeto de viabilidade econômica nos hospitais que se inscreveram e que foram politicamente “agraciados” numa publicação precoce e atrapalhada, muito menos identificaram como esses serviços irão fazer os equipamentos funcionarem, pois precisam de radioterapeutas, físicos médicos e de construções especiais e caras para serem instalados.
Esses profissionais se constituem em duas mãos de obras raríssimas no país. Portanto, só pensaram na compra dos equipamento e se esqueceram do funcionamento. Será que o governo é tão burro ou é muito maldoso?
Quem quiser se inteirar da nova Lei pode buscar pela 12.732 de 22/11/2012, que deverá entrar em vigor 180 dias após a publicação no Diário oficial da União.
Fiquei intrigado, pensando: quem, desta vez, irão prender por descumprimento à lei? Descobri que em Roraima, como no Amapá, Acre e algumas regiões populosas de estados ricos da Federação, não existem serviços de diagnóstico e tratamento de câncer.
Portanto, se em Roraima alguém descobrir que está com a doença, não terá como obedecer a lei e, então, só vai lhe restar pedir à Polícia Federal que prenda o único culpado: o câncer.
Em memória de Eric e Isabel.
GUILHERME BEZERRA DE CASTRO é médico cirurgião, oncologista e mastologista em Cuiabá.